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O mesmo [Divino Sobral] é o curador da primeira individual do artista Rafael de Almeida, “Sob nossos cascos”, no Centro Cultural Octo Marques, reunindo mais de 130 peças (entre dípticos, trípticos, polípticos e séries). Misturando a antiga técnica da cianotipia com a Inteligência Artificial (IA), Rafael — também professor de cinema pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) — investiga o seu próprio território com o auxílio de arquivos reais e inventados, seguindo as sugestões do uso da promptografia, mais que uma corrente, dir-se-ia uma tendência idealizada pelo pesquisador espanhol Juan Martín Prada, que deu forma teórica ao pensar no ato de criar fotografias com o uso de inteligência artificial a partir de prompts. A fabulação crítica da escritora e pesquisadora Saidiya Hartman é também matéria de  inspiração ao artista: “Aproprio-me dessas possibilidades para poder me ajudar a pensar a respeito dessa paisagem do Cerrado, para escrever a história dos caipiras do Brasil, dos sub-representados que estão colados na modernidade e contemporaneamente superatrasados”, relata Rafael.


O resultado é um conjunto brilhante que não tem um enquadramento certo nas tendencias atuais, velejando entre as ondas do pós-internet e da pós-verdade, mas com um apego extremamente poético conectado ao imaginário do próprio Cerrado, cuja paisagem social, popular, até estereotipada vem remexida a criar histórias nunca contadas porém bem presentes no DNA dessa porção do país tanto importante quanto deixada para trás nas crônicas de um Brasil grande e potente.


Rafael de Almeida, “um dos artistas mais em destaque dos últimos anos no cenário do Centro-Oeste”, conforme apresentação de Sobral, resgata esse tudo; transforma gado, vaquejadas, itinerâncias que se aparentam — de uma certa forma – aos caminhos dos retirantes, festas no campo e, principalmente, a relação de mão dupla entre os bois e os homens, também acariciando um certo sentido político, em uma elegia “imperfeita” do território goiano, já que qualquer registro vive numa eterna parcialidade, aliás, permitindo um trabalho antropológico no sentido mais amplo do termo. Da fato, o artista, “minera” itens que não pertencem a uma ideia exploratória, muito pelo contrario, abrem caminhos de energias limpas: aos (re)encontros com a própria identidade e, talvez, com um apaziguamento em relação a própria história, sem romantizá-la:“Como se desejasse analisar a alma da cultura sertaneja fazendo um mergulho em sua memória” (Divino Sobral).

 

Texto do crítico Matteo Bergamino para a Revista DasArtes em virtude da exposição individual "Sob nossos cascos", apresentada no Centro Cultural Octo Marques - Goiânia (Goiás). 2025. 

 

Sob nossos cascos, primeira exposição individual do artista visual e cineasta goiano Rafael de Almeida, convida a refletir sobre a vocação da fotografia contemporânea – empregada como suporte de pesquisa artística – para criar mundos singulares, mais que registrar uma fração da realidade objetiva. Nos últimos três anos, ele vem promovendo indagações sobre o estatuto de documento da imagem, e empregando os meios fotográfico e videográfico para criar ficções que lidam com a memória da formação da sociedade sertaneja, especialmente a goiana, forjada pelas relações com o meio rural e pela força do patriarcalismo da herança colonial.

Na elaboração de sua obra, uma das mais interessantes da produção goiana atual, lança mão de expedientes diversos utilizando tecnologias analógicas e digitais, praticando a apropriação de imagens de arquivos privados e públicos (como do IBGE), criando imagens – que parecem antigas – com ferramentas da inteligência artificial, e explorando os recursos visuais da cianotipia. Também amplia suas manobras por meio de interferências feitas com aplicação de tintas, com corrosão química ou deterioração por fungos, e com o bordado e a costura interfere nas obras com seu gesto físico, deixando as marcas da tradição artesanal comumente associada ao trabalho feminino, quebrando um pouco o excesso de masculinidade contido no assunto ao qual se volta.

 

As imagens criadas ou manipuladas por Almeida remetem a um tempo pretérito, são impregnadas de nostalgia, apesar do intenso uso da tecnologia atual. Há nelas uma temporalidade desconfortável, um presente que se observa e se analisa olhando para uma simulação do passado, construída pelo uso de fotografia preto e branco deslocada pela coloração própria à cianotipia, e, sobretudo, pelo enredamento nos temas voltados à formação identitária do Centro Oeste brasileiro. É como se desejasse analisar a alma da cultura sertaneja fazendo um mergulho em sua memória. A metodologia de trabalho de Almeida é formada por processos derivados da realização e edição de filmes, e elabora composições fotográficas por meio de técnicas de montagem, sequenciamento e justaposição.

Na maioria das vezes, suas obras constroem narrativas ao modo de episódios cujos títulos, com forte acento poético, possuem importante papel nas interpretações. Elementos iconográficos se repetem aqui e acolá adquirindo nuances de significados que revelam, por um lado, a lógica interna do pensamento do artista, e por outro, a complexidade de assuntos ligados à sociedade cerratense, esmiuçada e criticada. O artista investe em certo aspecto instalativo na apresentação de suas obras, muitas construídas em sequências fotográficas que formam conjuntos como dípticos, trípticos, polípticos e séries, explorando diferentes formatos, dimensões, suportes e arranjos no espaço, recursos que corroboram com a narratividade.   

Rafael de Almeida tem como objeto de interesse a pecuária, alicerce econômico da região Centro Oeste e que é substância viva e mítica da cultura sertaneja que aqui se faz. Ao longo de décadas a criação de bois saiu da pequena escala da roça para o modelo de grande produtividade do agronegócio, atendendo hoje ao mercado de commodities do capitalismo internacional. Vista em conjunto, a obra de Almeida nos leva a pensar que o modelo de manejo do gado influencia o modelo de condução da sociedade.

Os rebanhos são símbolos de poder, dinheiro e prestígio, sendo, portanto, historicamente, de domínio masculino. Rafael de Almeida ressalta a associação da pecuária com os processos educativos de formação da Identidade masculina no sertão, destacando as ideias de macheza, força, coragem e bravura conectadas ao exercício da violência e da brutalidade aplicadas desde a infância. Educa-se o homem como se doma o boi, e assim a animalidade humana pode ser inserida nas normas sociais e o homem se impor, soberanamente, sobre a natureza.

Texto do curador Divino Sobral para a exposição individual "Sob nossos cascos", apresentada no Centro Cultural Octo Marques - Goiânia (Goiás). 2025. 

No 26º Salão Anapolino de Arte, Rafael de Almeida apresenta “Aboio” e “Saída da boiada”, trabalho que pretende discutir questões como a indissociabilidade entre o sagrado e o profano, o coronelismo, a atualização da política do pão e circo junto a comunidades carentes e a violência simbólica alienante imposta às camadas mais pobres da população do interior do Brasil diante da falta de acesso aos meios de produção. Instigado pelo encontro com um registro em vídeo de 1988, do Rancho das Cavalhadas de Pirenópolis, o artista parte em uma jornada à procura das camadas de sentido camufladas nas imagens dessa festa profana e popular que ocorre às margens da Festa do Divino Espírito Santo e das Cavalhadas de Pirenópolis.

Texto do curador Paulo Henrique Silva para o catálogo do 26º Salão Anapolino de Arte - Goiás. 2022.

 

 

 

O trabalho de Rafael de Almeida conduz nosso olhar ao interior goiano, à cultura sertaneja enraizada nas heranças rurais, na economia fundada na pecuária e na agricultura, nas festas populares presentes na memória e na vida do povo goiano. As imagens do vídeo são refilmadas; captadas de uma tela elas adquirem aparência filtrada, com um brilho discreto de interessante efeito visual, que faz o passado ser atualizado pela transferência de uma mídia a outra, pela textura pixelizada do presente. Não há narrativa e sim rápida colagem de imagens que amarra fragmentos de dois filmes: uma peça publicitária que destaca o vigoroso touro no corredor de entrada da arena de rodeio, seguido do peão forte e viril a domá-lo; um registro amador, filmado no antigo sistema VHS, do baile realizado no Rancho das Cavalhadas, em Pirenópolis, durante a Festa do Divino de 1988. Ambas as imagens tratam de um Goiás profundo, que celebra ao mesmo tempo o sagrado e o profano enquanto o velho coronelismo permanece como modelo inalterável.


Texto do curador Divino Sobral para o catálogo do 3º Salão de Arte em Pequenos Formatos do Museu de Arte de Britânia - Goiás. 2022. 

© 2024 Rafael de Almeida

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